sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Quero Liberdade (cap. III), de Rose Wilder Lane

III

A imagem da revolução econômica como o passo final para a liberdade se mostrou falsa tão logo eu me fiz essa pergunta. Porque, na realidade, o Estado e o Governo não podem existir. São conceitos abstratos, suficientemente úteis em seus lugares, como a teoria dos números negativos é útil na matemática. Na experiência real vivida, entretanto, é impossível subtrair alguma coisa de nada; quando uma bolsa está vazia, está vazia. Não pode conter menos dez dólares. Nesse mesmo plano de realidade, não existe Estado, não existe Governo. O que existe de fato é um homem, ou alguns homens, no poder sobre muitos outros homens.

A Reforma reduziu o poder do Estado – os padres – de maneira que o homem comum passou a ser livre para pensar e falar como quisesse. A revolução política reduziu ou destruiu o poder do Estado – os reis – de maneira que o homem comum ficou mais próximo de ser livre para fazer o que quisesse. Mas esta revolução econômica concentrava o poder econômico nas mãos do Estado – os comissários – de maneira que a vida e os meios de subsistência do homem comum estavam outra vez dominados por ditadores.

Todos os avanços na direção da liberdade pessoal que haviam sido ganhos pela revolução religiosa e pela revolução política foram perdidos pela reação econômica coletivista.

Quando analisei esses fatos, vi que não podia ser de outra maneira. A aldeia comunista era possível porque lá uns poucos homens, cara a cara, lutavam cada um por seu interesse próprio, até que daquele conflito se chegasse a um equilíbrio razoavelmente satisfatório. A mesma coisa acontece dentro de toda família. Mas o governo de centenas de milhões de homens é outra coisa. O tempo e o espaço impedem uma luta pessoal de tantas vontades, cada pessoa em um encontro pessoal com cada outra, chegando a uma decisão comum. O governo de multidões de homens fica necessariamente nas mãos de poucos.

Os americanos criticavam Lênin porque ele não estabeleceu uma república. Se ele tivesse feito isso, o fato de que poucos homens governavam a Rússia não teria mudado.

O governo representativo não pode expressar a vontade da massa de pessoas porque não existe massa de pessoas. O Povo é uma ficção, assim como o Estado. Não se consegue obter a Vontade da Massa, mesmo entre uma dúzia de pessoas que querem fazer um piquenique. A única massa humana com uma vontade comum é uma turba e essa vontade é uma insanidade temporária. Na realidade, a população de um país é uma multidão de seres humanos diferentes com uma infinita variedade de objetivos e desejos e vontades flutuantes.

Numa república, essa população decide de tempos em tempos, por maioria, qual dos candidatos a um cargo público poderá usar o poder de polícia do Estado. De tempos em tempos, uma ação da maioria pode mudar os métodos pelos quais os homens chegam ao poder, a extensão desse poder ou em que termos eles podem mantê-lo. Mas a maioria não governa; não pode governar; no máximo, age como um freio sobre os governantes. Qualquer governo de multidões de homens, em qualquer lugar, em qualquer tempo, necessariamente é um homem ou uns poucos homens no poder. Não há como escapar desse fato.

Uma república não é possível na União Soviética porque o objetivo de seus governantes é econômico. O poder econômico é diferente do poder político.

A política é uma questão de princípios gerais que, uma vez adotados, podem permanecer inalterados indefinidamente; princípios como, por exemplo, de que o governo deriva seus justos poderes do consentimento dos governados. Desses princípios são extraídas regras gerais, como “No taxation without representation1. Essas regras são encarnadas na legislação que restringe ou limita o poder político, como: “O direito exclusivo de cobrar impostos pertence ao Congresso e apenas o Congresso pode gastar o dinheiro recolhido de impostos”. Esta aplicação mais concreta do princípio político não afeta os detalhes íntimos da vida do indivíduo. Podemos descuidadamente permitir que o Congresso faça o que bem entender, podemos deixar de reagir quando ele quiser tomar uma medida que nos afeta, podemos resmungar quando temos de tomar um empréstimo para pagar os impostos ou podemos perder nossa casa ou fazenda se não conseguirmos e, mesmo assim, a liberdade pessoal de escolha ainda é nossa.

A economia, entretanto, não se preocupa com princípios abstratos e leis gerais, mas com coisas materiais; trata diretamente com vagões reais carregados de carvão, colheitas reais de grãos, produção real de fábricas. O poder econômico em ação está sujeito a uma infinidade de crises imprevisíveis que afetam as coisas materiais; está sujeito às secas, a tempestades, a enchentes, a terremotos e pestes, à moda, a doenças, a insetos, a falhas mecânicas e ao desgaste do maquinário. E a economia participa dos pequenos detalhes da existência de uma pessoa – sua alimentação, bebida, trabalho, diversão e hábitos pessoais.

Governantes econômicos devem decidir sobre questões como: quantos metros de tecido devem ser usados num vestido de mulher? Batons devem ser permitidos? Existe valor econômico no chiclete? Há um ponto de vista perfeitamente válido segundo o qual toda a indústria de fumo é um desperdício econômico.

Todo o sistema de circulação da economia é afetado pelo número de pessoas que lavam atrás das orelhas. Esse assunto tão pessoal afeta a importação e produção de óleos vegetais; o uso de gordura de animais de fazenda; a manufatura de produtos químicos: perfumes, corantes; a construção ou o fechamento de fábricas de sabão, com consequentes mudanças no emprego nessas fábricas e no negócio da construção civil e indústrias pesadas e na demanda por matérias-primas e por trabalho na sua produção; e nos fretes e no uso de combustíveis, com seus efeitos sobre minas, campos de petróleo e transportes. Já falamos do sabão. Considere agora as toalhas de rosto que podem ou não ser usadas para lavar atrás das orelhas, com todos os efeitos dessa decisão sobre plantações de algodão ou linho e o trabalho, no campo e nas fábricas; descaroçadores de algodão e seus subprodutos das sementes de algodão: óleo, fertilizante ou alimento para o gado; e máquinas de fiação e tecelagem e suas demandas sobre a indústria do aço.

Todos esses fatores econômicos, e muitos outros, mudam se os hábitos pessoais de higiene mudam. Uma dieta de Hollywood ou uma paixão por quebra-cabeças têm resultados prodigiosos nos lugares mais remotos e inesperados. O fato de a criança, faminta ao voltar da escola, comer pão com manteiga ou doces é um assunto de importância econômica internacional.

O controle centralizado da economia sobre multidões de seres humanos precisa, portanto, ser contínuo e flexível de uma maneira sobre-humana, além de ser autocrático. Um governo assim precisa de um fluxo rápido de decretos emitidos apressadamente para responder em tempo a eventos que somem no passado, antes que possam ser relatados, organizados, analisados e considerados e será obrigado a usar a coerção. No esforço de ser bem-sucedido, o controle terá de se tornar rigoroso e minucioso sobre pequenos detalhes da vida individual, de uma maneira que ninguém aceitaria sem coerção. Não pode ser submetido a verificações, revogações e remoções de pessoas no poder que as maiorias podem provocar nas repúblicas.

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