sábado, 1 de fevereiro de 2014

Proust, sobre a amizade

Achei curioso este trecho de O Caminho de Guermantes, em que Proust fala mal da amizade. Não publico por concordar com ele, mas pelo estranhamento que provocou em mim.

É interessante que ele cite Nietzsche, que é a base filosófica de grande parte de sua obra. Também chama a atenção que Proust enuncie expressamente um dos temas obsessivos de Em Busca do Tempo Perdido: a incomunicabilidade do que existe de mais importante no ser humano, incomunicabilidade essa que só pode ser vencida por meio da arte. O último ponto a ressaltar é que Proust certamente se via como (e era de fato) o artista que traz dentro de si uma obra-prima e cujo dever seria viver para trabalhar. Mesmo assim, adiou por anos o início de seu trabalho e de fato morreu antes de lhe dar a forma final.

Aqui vai o trecho:

«Já disse (e precisamente fora, em Balbec, Robert de Saint-Loup quem me ajudara, a seu pesar, a tomar consciência disso) o que penso da amizade, a saber: que vale tão pouco, que me custa compreender que homens de certo talento, como Nietzsche, por exemplo, tenham tido a ingenuidade de lhe atribuir um certo valor intelectual e, em conseqüência, recusar-se às amizades a que não estivesse ligada a estima intelectual. Sim, espantou-me sempre ver que um homem que levava a sinceridade consigo mesmo a ponto de se afastar, por escrúpulo de consciência, da música de Wagner, imaginasse que a verdade pode cumprir-se nesse modo de expressão, confuso e inadequado por natureza, que são em geral as ações e, em particular, as amizades, e que possa haver um sentido qualquer no fato de alguém deixar o trabalho para ir visitar um amigo e juntos chorarem ao saber da falsa notícia do incêndio do Louvre. Em Balbec, eu chegara a considerar o prazer de jogar com as moças menos funesto à vida espiritual, à qual pelo menos ele permanece alheio, do que a amizade, cujo esforço inteiro consiste em nos fazer sacrificar a única parte real e incomunicável de nós próprios (a não ser por meio da arte) a um eu superficial que não encontra, como o outro, alegria em si mesmo e sim o enternecimento confuso de se sentir sustentado por estacas externas, hospitalizado numa individualidade estranha, onde, feliz com a proteção que lhe é dada, faz reluzir seu bem-estar aprobativo e se maravilha com qualidades a que chamaria defeitos e buscaria corrigir em si mesmo. Além do mais, os difamadores da amizade podem, sem ilusões e não sem remorsos, ser os melhores amigos do mundo, da mesma forma que um artista que traz dentro de si uma obra-prima e que sente que o seu dever seria viver para trabalhar, apesar disso, para não parecer ou arriscar-se a ser egoísta, dá sua vida por uma causa inútil, e a concede com bravura tanto maior quanto mais desinteressadas fossem as razões pelas quais preferiria não concedê-la. Mas, seja qual for minha opinião acerca da amizade, até para só falar do prazer que ela me proporcionava, de qualidade tão medíocre que me parecia algo intermediário entre o cansaço e o tédio, não há beberagem tão funesta que não possa, em determinados momentos, tornar-se preciosa e reconfortante, dando-nos a excitação necessária, o calor que não conseguíamos encontrar em nós mesmos.»

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