sábado, 22 de março de 2014

O escudo de Aquiles


No Canto XVIII da Ilíada, Tétis pede a Hefesto que faça uma armadura para seu filho Aquiles. A que ele tinha antes foi emprestada a Pátroclo e tomada por Heitor. Hefesto, por ser manco, havia sido jogado do Olimpo por sua mãe, Hera, e foi então  criado por Tétis durante nove anos. O deus ferreiro aceitou a incumbência. Fez a armadura e um escudo em uma noite. Homero descreve assim o escudo de Aquiles:

«Fez primeiro um escudo, grande, robusto, bem trabalhado em todos os sentidos. Adaptou-lhe em torno uma orla tripla, brilhante, ofuscante, e nela prendeu uma correia de prata. Havia cinco placas no escudo propriamente dito; e Hefesto nelas entalhou, com arte sábia, primorosos ornatos.

Nele representou a terra, e o céu, e o mar, o sol infatigável e a lua cheia, e todos os astros que coroam o céu, as Plêiades, as Híades, o poderoso Órion e a Ursa, também chamada o Carro, que gira sobre si mesma espiando Órion, e é a única que não se banha no Oceano.

Nele cinzelou duas cidades humanas, belas. Em uma, havia bodas e festins. Os noivos, de seus aposentos, sob as tochas brilhantes, eram levados para a cidade, e em toda parte se erguia o hino nupcial. Giravam jovens dançarinos, em cujo meio se ouviam liras e flautas. As mulheres, em pé, admiravam, cada qual defronte de sua porta. Na praça pública, reunira-se a multidão. Ali surgira uma briga. Dois homens altercavam-se sobre o resgate de sangue de um homem assassinado. Um afirmava haver dado tudo e declarava-o diante do povo, o outro dizia nada haver recebido. Os dois invocavam uma testemunha, para por fim à disputa. A multidão gritava, em parte favorável a um, em parte a outro, ora apoiando um, ora apoiando outro; arautos continham a plebe. Os anciãos estavam sentados em pedras polidas, no círculo sagrado. Empunhavam-lhes os cetros arautos cuja voz faz tremer o ar. Depois, tomando-os dos arautos, eles adiantavam-se e emitiam sua opinião, cada qual por sua vez. No meio estavam depositados dois talentos de ouro, para aquele que, entre eles, pronunciasse o julgamento mais reto.

Em torno da outra cidade acampavam dois exércitos, brilhantes sob as armas. As alternativas discutidas pelos sitiantes eram destruí-la ou tomar a metade dos bens encerrados na belíssima cidade. Mas os sitiados não cediam e, preparando uma emboscada, armavam-se em segredo. A muralha era defendida pelas mulheres, pelas crianças e pelos velhos. Os outros marchavam, capitaneados por Ares e Palas Atena, ambos de ouro e vestidos de ouro, belos e grandes com as armas, como deuses, e perfeitamente reconhecíveis: os soldados, abaixo, eram menores. Chegados ao lugar apropriado para a emboscada, no leito do rio que servia de bebedouro a todos os rebanhos, lá se postaram, cobertos de bronze chamejante. À distância da tropa havia dois vigias, esperando ver os carneiros e bois de chifres recurvos, que não tardaram em surgir diante deles, seguidos de dois pastores, entretidos em tocar flauta, inteiramente alheios à cilada. Vendo-os, correram sobre eles os homens escondidos. Rápidos, afastaram as manadas de bois e os belos rebanhos de alvos carneiros, e mataram os pastores.

Ouvindo o grande alarido feito em torno dos bois, à frente do local em que estavam reunidos, os sitiantes montaram imediatamente nos carros de cavalos campeadores, para lá se dirigiram e lá chegaram num abrir e fechar de olhos. Tomando posição, travavam batalha nas margens do rio; e os combatentes golpeavam-se uns aos outros com as lanças de pontas de bronze. A eles se misturavam a Discórdia, o Tumulto e o lamentável Destino, que segurava um homem vivo apesar de ferido, outro ileso e outro morto, que, através da luta, arrastava pelos pés. O morto tinha as vestes, nos ombros, vermelhas do sangue dos homens. Esses personagens agitavam-se como homens vivos; combatiam, arrastavam para si os cadáveres uns dos outros.

No escudo, Hefesto gravou a macia terra de cultivo, uma terra rica, vasta e três vezes arada. Muitos lavradores faziam girar as parelhas de bois e as levavam para cá e para lá. Quando, tendo feito meia volta, voltavam ao limite do campo, tomavam uma taça de vinho doce como mel, oferecida por um homem que se adiantava. E retornavam ao sulco, ansiosos por chegar a orla da terra arada, que escurecia atrás deles, semelhando terra lavrada, embora fosse ouro. E esse trabalho era um maravilhoso primor.

Hefesto esculpiu ali também um campo real, onde ceifeiros trabalhavam, empunhando afiadas foices. Uma parte do trigo ceifado caía na terra e a outra os enfeixadores amarravam com cordas de palha. Havia três enfeixadores; atrás deles, apanhando o trigo e carregando-o nos braços, crianças forneciam-lhes sem cessar. Entre eles, empunhando o cetro, estava o rei em pé, num sulco, com o coração alegre. Arautos, mais adiante, debaixo de um carvalho, ocupavam-se da refeição. Tendo sacrificado um grande touro, preparavam-no; e as mulheres despejavam muita aveia branca sobre a carne, para o jantar dos ceifadores.

Hefesto tracejou também no escudo, todo carregado de uvas, um belo vinhedo dourado; uvas negras campeavam no alto das cepas, em toda parte sustentadas por tanchões de prata. Em torno, traçou um fosso de esmalte azul-escuro e, em toda a extensão, uma cerca de estanho. Somente um caminho a atravessava, à qual se chegava por um atalho único, pelo qual seguiam os vindimadores no tempo da colheita. Moças e rapazes, cheios de ternos sentimentos, carregavam nas cestas trançadas o fruto doce como mel. No meio deles, uma criança, dedilhando a cítara de som claro, tocava com muita graça e, acompanhando-se da melodia, entoava, com voz meiga, uma linda canção de Lino. Os outros, tocando o solo ao mesmo tempo, seguiam o ritmo do canto e da meiga voz com os pés dançarinos.

Hefesto lavrou no escudo um rebanho de vacas de chifres retos. Essas vacas eram de ouro e de estanho; mugindo, seguiam do curral ao pasto, ao pé de ressoante rio, margeado por juncos ondulantes. Pastores de ouro acompanhavam-nas; eram quatro, seguidos de nove cães velozes. Terríveis, dois leões, no meio das primeiras vacas, agarravam um touro que mugia. Este, com longos bramidos, era arrastado; os cães e os rapazes perseguiam os dois leões, que, tendo rasgado a pele do grande animal, lhe devoravam as entranhas e o sangue negro. Os pastores em vão os perseguiam, atiçando os cães velozes. Estes se recusavam a morder os leões, latindo perto deles e evitando-os.

Hefesto, o ilustre manco, desenhou ainda um pasto em formoso vale, extenso pasto de alvas ovelhas, com estábulos, tendas cobertas e redis.

Nele colocou o ilustre manco um coro variado, semelhante àquele que, outrora, na vasta Cnossos, Dédalo executou para Ariadne de belas tranças. No coro, moças e rapazes que valiam muitos bois dançavam de mãos dadas. Elas trajavam vestidos de fino linho e eles vestiam bem tecidas túnicas, que brilhavam com o suave brilho do óleo; elas traziam belas coroas, e eles, punhais de ouro suspensos em cintos de prata. Às vezes, corriam agilmente formando uma roda, com os hábeis pés, com extrema facilidade, como um oleiro experimenta sua roda; outra vezes, ao contrário, corriam alinhados uns para os outros. Uma multidão cercava, fascinada, o coro encantador. Entre os bailarinos, cantava um divino poeta, que dedilhava a cítara, e dois acrobatas, cujo ritmo era marcado pelo canto, rodopiavam no meio.

Hefesto colocou ainda o grande poder do rio Oceano na borda extrema do escudo solidamente construído.»

Não tem Cavalo de Troia na Ilíada
Aquiles conversa com seus cavalos
A morte de Pátroclo

6 comentários:

  1. Obrigada. Procurei por esta passagem em muitos lugares. Agradeço muito, continue o bom trabalho... É apreciado. ;)

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    1. Obrigado pelo interesse. Fico feliz se a citação foi útil.

      Tenho duas edições da Ilíada em português, a da Biblioteca Folha e a clássica tradução de Octavio Mendes Cajado, de 1961. Este texto é uma média entre as duas.

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  2. Pode se dizer que o escudo retratava uma alternativa para guerra? Família, amigos ou o que estiver em jogo?!

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  3. Nunca consegui conceber heroísmo no relato homérico em que um homem, cujo corpo foi tornado invulnerável por poderes sobrenaturais, massacra homens comuns. Isso ao meu ver está mais perto do contrário.

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  4. como tudo isso coube num único escudo? e como seria possível erguer um escudo tão grande?

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  5. A menos que seja tecnologia dos senhores do tempo...

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