domingo, 29 de junho de 2014

Sócrates, sobre uma briga entre irmãos

Em outra ocasião, Sócrates soube que dois irmãos, Querofonte e Querécrates, a quem ele conhecia bem, estavam brigados. Ao ver este último, chamou-o:

Certamente, Querécrates, você não é um daqueles que acham que bens materiais valem mais que um irmão. Os bens são insensíveis e os irmãos têm sentimentos; precisamos cuidar dos bens, mas um irmão pode cuidar de nós; você possui muitos bens, mas só um irmão. Também é estranho que alguém se sinta prejudicado por seus irmãos por não possuir o que eles possuem, mas não sinta a mesma coisa em relação a seus compatriotas; neste caso, as pessoas percebem que é melhor pertencer a uma comunidade possuindo o suficiente que viver na solidão, com a posse precária da propriedade de todos. Porém, não percebem que o mesmo princípio se aplica aos irmãos. Muitos possuem meios para que seus servos façam o trabalho em seu lugar e fazem amigos porque sentem a necessidade de ajudar, mas não se preocupam com seus irmãos, como se a amizade pudesse existir entre compatriotas, mas não entre irmãos! Porém, ter o mesmo sangue e a mesma criação cria fortes laços de afeto. Até animais selvagens criados juntos sentem uma ternura natural uns pelos outros. Além disso, nossos compatriotas respeitam mais aqueles que têm irmãos que aqueles que são filhos únicos e são menos dispostos a se desentender com os primeiros.

Se a diferença entre nós não fosse importante, Sócrates, — respondeu Querécrates —talvez fosse meu dever deixá-la de lado e não permitir que uma ninharia me separasse de meu irmão. Um irmão que se comporta como irmão, da maneira que você diz, é uma bênção; mas, se sua conduta não é essa, se é o inverso do que devia ser, qual o sentido de se tentar o impossível?

Querécrates, todas as pessoas acham Querofonte tão desagradável quanto você acha, ou alguns o consideram muito agradável?

Ah, Sócrates, — respondeu ele — essa é exatamente minha razão para odiá-lo: ele é muito bom para as outras pessoas, mas sempre que está próximo a mim, invariavelmente o que diz e faz é mais para me ferir que para me ajudar.

Bem, — disse Sócrates — se você tentar montar um cavalo sem saber a maneira correta, ele vai feri-lo. É assim com seu irmão? Será que o fere porque você tenta lidar com ele sem saber a maneira correta?

Não! — exclamou Querécrates. — Como eu não sei como lidar com um irmão, se eu retribuo qualquer palavra bondosa, qualquer ato generoso? Mas não tenho como falar ou agir gentilmente com alguém que me agride com suas palavras e ações. Mais que isso, não quero tentar.

Querécrates, o que você diz é espantoso! Se você tivesse um cachorro que fosse amistoso com os rebanhos e os pastores, mas rosnasse quando você se aproximasse, você não ficaria com raiva dele, mas tentaria tratá-lo bem para amansá-lo. Você diz que, se seu irmão tratasse você como a um irmão, seria uma grande bênção, e confessa que sabe falar e agir gentilmente: porém, não se propõe a agir para que ele se torne a maior bênção possível para você.

Receio, Sócrates, que me falte sabedoria para fazer Querofonte me tratar como deveria.

Porém, — disse Sócrates — não é necessário, a meu ver, nenhum esforço sutil ou estranho da sua parte: acredito que você sabe qual é a maneira de cativá-lo e fazer com que ele tenha boa opinião sobre você.

Se você observou que conheço algum encantamento para isso, sem que esteja consciente desse conhecimento, peço que me diga agora.

Então, diga-me: se você quisesse ser convidado para jantar com um amigo quando ele oferece sacrifício, o que você faria?
É claro que eu deveria começar convidando-o quando eu oferecesse sacrifício.

E suponha que você quisesse que um amigo seu cuidasse das suas coisas enquanto você estivesse ausente, o que você faria?

É claro que eu deveria primeiro assumir a responsabilidade de cuidar das suas coisas na ausência dele.

E suponha que você quisesse que um estranho apresentasse a você a cidade dele, quando você a visitasse, o que você faria?

Obviamente, eu deveria primeiro apresentar-lhe Atenas quando ele viesse para cá. Sim, e se eu quisesse que ele me ajudasse com os negócios que me levaram à sua cidade, é evidente que eu deveria primeiro fazer o mesmo por ele.

Parece que você esconde há muito tempo o conhecimento de todos os encantamentos que já foram descobertos. Ou será que você hesita em tomar a iniciativa, por medo de se desonrar, ao ser o primeiro a demonstrar boa vontade com seu irmão? Porém, geralmente se considera digno dos maiores elogios aquele que se antecipa à malevolência do inimigo e à benevolência do amigo. Assim, se eu achasse Querofonte mais capaz que você de trilhar o caminho para essa amizade, tentaria convencê-lo a dar o primeiro passo para um entendimento. Mas, da maneira como as coisas se apresentam, acho mais provável que esse entendimento seja bem-sucedido pela sua iniciativa.

É estranho isso, Sócrates. É um fato incomum que você peça a mim, que sou o mais novo, que conduza a questão! E não é verdade que qualquer outra pessoa terá a opinião contrária, ou seja, que o mais velho sempre deveria falar e agir primeiro?

Como assim? — disse Sócrates. — Não é a opinião geral que um jovem sempre deve dar passagem para o mais velho quando se encontram, oferecer seu assento a ele, dar-lhe um leito confortável, dar-lhe a precedência da palavra? Meu bom amigo, não hesite, mas assuma a tarefa de pacificar seu irmão e, imediatamente, ele responderá às suas atitudes. Você não percebe como ele é inteligente e franco? Pessoas baixas, é verdade, reagem prontamente a presentes, mas a bondade é a arma mais eficaz para convencer um homem de valor.

Mas e se todos os meus esforços não levarem a nenhum resultado? — perguntou Querécrates.

Bem, nesse caso, presumo que você terá provado que é honesto e fraterno e que ele é egoísta e não merece sua amizade. Mas tenho confiança de que as coisas não vão terminar assim; acho que, assim que perceber que você o desafia a ser seu amigo, ele se empenhará ao máximo em superar suas boas palavras e ações. O que aconteceria se um par de mãos recusasse a tarefa de ajuda mútua para a qual Deus as fez e cada mão tentasse contrariar a outra? Ou se um par de pés desprezasse seu dever de trabalharem juntos, para o qual foram feitos, e cada pé resolvesse criar problemas para o outro? É assim que vocês estão se comportando agora. Não seria o mais desastroso contra-senso usar como obstáculos instrumentos que foram feitos para o auxílio? E, além disso, os pares de irmãos, em minha opinião, foram criados por Deus para se ajudarem de maneira mais efetiva que um par de mãos, ou de pés ou de olhos, ou de qualquer instrumento que Ele tenha criado para ser usado em conjunto. Porque as mãos não conseguem lidar ao mesmo tempo com coisas que estão a mais de dois metros de distância. Os pés não alcançam em um passo coisas que estão separadas por dois metros. E os olhos, embora pareçam ter maior alcance, não conseguem ver, no mesmo instante, coisas que estejam até mais próximas, se algumas estão na frente e outras atrás. Mas dois irmãos, quando são amigos, agem ao mesmo tempo, pelo benefício mútuo, independentemente da distância que exista entre eles.



Narrado por Xenofonte, em Memorabilia. Traduzido por Marcelo Centenaro, a partir das traduções de E. M. Marchant, do grego para o inglês, e de Ana Elias Pinheiro, do grego para o português de Portugal.

O grifo é meu.

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